Cientistas do centro de pesquisa biomédica City of Hope, nos Estados Unidos, usaram um distúrbio genético raro para entender melhor como o fígado acumula gordura e como hormônios podem influenciar o gosto por açúcar e álcool. O estudo foi publicado em novembro na revista científica Nature Metabolism.
A pesquisa se concentra na deficiência de citrina, uma condição hereditária causada por uma alteração no gene SLC25A13. O gene é responsável por produzir uma proteína que ajuda o fígado a usar corretamente os carboidratos para gerar energia. Quando a proteína não funciona, o metabolismo hepático fica comprometido.
O que é a deficiência de citrina
Pessoas com deficiência de citrina têm dificuldade em processar carboidratos no fígado. Isso acontece porque a célula não consegue transportar adequadamente as moléculas envolvidas na produção de energia, como o NADH, para dentro da mitocôndria — a “usina” da célula.
Mesmo sendo, em geral, magras, essas pessoas podem desenvolver doença hepática gordurosa associada à disfunção metabólica (MASLD), condição caracterizada pelo acúmulo de gordura no fígado. Além disso, muitos pacientes apresentam algo incomum: aversão natural a doces e bebidas alcoólicas.
Essas características chamaram a atenção dos pesquisadores, que decidiram investigar como um mesmo problema genético poderia levar tanto ao acúmulo de gordura no fígado quanto à rejeição ao açúcar.
O que acontece no fígado quando o gene falha
O estudo mostrou que a falha no gene SLC25A13 leva ao acúmulo de uma substância chamada glicerol-3-fosfato (G3P) dentro do fígado. Esse acúmulo ativa uma proteína reguladora conhecida como ChREBP, que controla genes ligados ao metabolismo dos carboidratos.
Quando o ChREBP é ativado, ele estimula dois processos importantes ao mesmo tempo. O primeiro é a produção de gordura no fígado, o que ajuda a explicar o desenvolvimento da esteatose hepática. O segundo é o aumento da produção de um hormônio chamado FGF21, liberado pelo próprio fígado.
O FGF21 atua como um mensageiro entre o fígado e o cérebro. Segundo os cientistas, estudos anteriores já mostravam que esse hormônio pode reduzir o desejo por açúcar e álcool, além de influenciar o gasto de energia do organismo.
Neste estudo, os cientistas observaram que níveis elevados de FGF21 ajudam a explicar por que pessoas com deficiência de citrina tendem a evitar doces e bebidas alcoólicas. Ou seja, o mesmo mecanismo que leva ao acúmulo de gordura no fígado também ativa um “freio hormonal” para o consumo de açúcar.
O que é gordura no fígado?
- Popularmente chamada de gordura no fígado, a esteatose hepática acontece quando as células do órgão acumulam gordura em excesso.
- Nos estágios iniciais, a condição costuma ser silenciosa e não apresenta sintomas evidentes.
- À medida que progride, porém, podem surgir dores abdominais na parte superior direita do abdômen, cansaço, fraqueza, perda de apetite, aumento do fígado, inchaço na barriga, dor de cabeça frequente e dificuldade para perder peso.
- As principais causas estão relacionadas à obesidade, à diabetes, ao colesterol alto e ao consumo excessivo de álcool.
- A doença é mais comum em mulheres sedentárias, já que o hormônio estrogênio favorece o acúmulo de gordura no fígado. Ainda assim, pessoas magras, que não bebem, e até crianças também podem desenvolver a condição.
Para confirmar os achados, os pesquisadores usaram modelos experimentais, incluindo camundongos com alterações semelhantes às observadas na doença humana. Nesses modelos, foi possível ver claramente o aumento do G3P, a ativação do ChREBP, a elevação do FGF21 no sangue e o acúmulo de gordura no fígado — mesmo sem ganho de peso.
Os resultados ajudam a esclarecer um ponto que parecia contraditório na ciência: o FGF21 pode aumentar tanto quando há excesso quanto quando há falta de carboidratos. O estudo indica que o fator central não é apenas a quantidade de açúcar ingerida, mas sim o desequilíbrio no metabolismo hepático, que leva ao acúmulo de G3P.
Esse mesmo mecanismo pode estar envolvido em situações mais comuns, como o consumo excessivo de álcool ou frutose, sugerindo que a via descoberta não se limita a uma doença rara.
O que a descoberta pode mudar no futuro
Embora a deficiência de citrina seja pouco frequente, os pesquisadores destacam que os mecanismos identificados podem ajudar a entender formas comuns de gordura no fígado, inclusive em pessoas que não têm obesidade.
O estudo continua em desenvolvimento para no futuro concretizar novos tratamentos que atuem na via G3P–ChREBP–FGF21, seja para controlar a doença hepática gordurosa, seja para modular o apetite por açúcar.