Comer assistindo à televisão parece inofensivo — para muitos, até relaxante. Mas esse hábito cotidiano tem efeitos diretos no cérebro, na digestão e no controle do apetite.
Especialistas explicam que quando a atenção está na tela, o corpo “perde o fio” do que acontece no prato. O resultado pode ser comer mais do que precisa, sentir menos prazer e confundir fome física com emocional. Segundo a psicóloga Handreza Oliveira, o principal problema é a fragmentação da atenção.
“Quando comemos assistindo à TV, o cérebro prioriza estímulos visuais e auditivos externos e ignora sinais internos, como fome e saciedade”, explica.
O córtex pré-frontal — área ligada às decisões conscientes — fica ocupado com o conteúdo da tela, enquanto a comunicação entre o sistema digestivo e o hipotálamo, que processa a saciedade, se torna mais lenta.
O “atropelo” da saciedade
A percepção de estar satisfeito não depende apenas do estômago cheio. Ela envolve hormônios, sentidos e uma etapa inicial chamada fase cefálica da digestão — quando ver, cheirar e antecipar o alimento prepara o corpo para comer.
“Quando a pessoa não presta atenção no prato, essa fase é pulada. A comida chega ‘de surpresa’ ao estômago, e o cérebro demora mais para entender que já é hora de parar”, diz Handreza. Isso favorece o consumo além do ponto de necessidade biológica.
Na prática, a distração interfere na memória da refeição. O cérebro registra menos o que foi comido e, pouco tempo depois, envia sinais de fome novamente.
“A atenção dividida degrada a memória episódica da refeição — aquela que guarda a experiência, o gosto e a satisfação. Sem esse registro, a fome volta mais cedo”, afirma a psicóloga. Além disso, o prazer diminui: após as primeiras garfadas, entra-se em um modo automático, comendo sem real satisfação.
Exageros e compulsão
Há também uma relação importante entre comer distraído e episódios de exagero. Na abordagem cognitivo-comportamental, isso é visto como uma forma de desconexão do momento presente. Para quem sofre de compulsão alimentar, a TV funciona como um anestésico emocional.
A distração faz o episódio durar mais, porque o desconforto físico do estômago cheio demora a ser percebido. Do ponto de vista nutricional, a distração favorece escolhas automáticas.
“Quando a atenção não está no ato de comer, o cérebro não registra bem o volume ingerido nem o tempo da mastigação”, afirma a nutricionista Júlia Batista Cassiano.
Nesses momentos, tendem a aparecer alimentos que exigem pouca mastigação e oferecem recompensa rápida, como salgadinhos, doces, refrigerantes e fast-food — os ultraprocessados, ricos em açúcar, gordura e sal, mas pobres em nutrientes.
Comer com atenção estimula saliva e enzimas digestivas antes mesmo da primeira mordida. Segundo a nutricionista, quando estamos distraídos, essa preparação é negligenciada.
A mastigação fica insuficiente e a digestão pode se tornar mais lenta e menos eficiente. A distração também “atrasaria” o sinal de saciedade: embora se fale em leptina e grelina (hormônios cruciais que controlam o apetite e o peso), as evidências indicam que a interferência é principalmente cognitiva — o cérebro não percebe a tempo que o corpo já recebeu energia suficiente.
Peso, hábitos e condicionamento
A longo prazo, o hábito de comer vendo TV está associado ao aumento do índice de massa corporal (IMC) e ao maior risco de sobrepeso e obesidade. Isso acontece porque a pessoa passa a comer guiada por estímulos externos — como a duração de um programa — e não pelos sinais internos do corpo.
Há ainda o condicionamento: com o tempo, o cérebro associa sofá e TV ao ato de comer. “Mesmo sem fome, ao ligar a televisão, surge o desejo automático por comida”, diz Handreza.
De acordo com as especialistas, crianças e adolescentes são especialmente vulneráveis nesse contexto. Além de consumirem mais calorias diante das telas, tendem a escolher alimentos piores, influenciados por propagandas, e porções maiores.
“Há uma janela importante para formar vínculos positivos com a comida. A refeição à mesa, sem telas, protege os hábitos alimentares e fortalece vínculos familiares”, reforça Júlia.
Como começar a mudar
As especialistas destacam que não é preciso perfeição, e sim pequenas escolhas consistentes. Uma delas é eleger ao menos uma refeição por dia sem telas, focando em sabor, cheiro e textura.
Outra estratégia é porcionar alimentos quando for assistir a um filme — evitar comer direto da embalagem — e priorizar opções simples, como pipoca caseira com pouco óleo e frutas.
Para Handreza, vale lembrar da metáfora: “Comer vendo TV é como conversar com alguém de fone de ouvido. A mensagem até chega, mas não é totalmente entendida”. Ao desligar a tela e ligar a atenção, o cérebro volta a ouvir o corpo — e a comida cumpre melhor seu papel de nutrir, e não apenas distrair.