Com chegada da tirzepatida, uso indiscriminado para emagrecer preocupa


Após meses de expectativa, a tirzepatida começou a ser comercializada no país em maio, com o nome comercial Mounjaro. Fabricado pela farmacêutica estadunidense Eli Lilly, o fármaco é apontado como o mais potente no arsenal contra a obesidade e a diabetes tipo 2. Aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2023 para o tratamento de diabetes, o remédio só agora chegou efetivamente às farmácias, em meio a uma demanda aquecida e a um debate crescente sobre quem vai, de fato, se beneficiar da nova promessa da medicina metabólica.

O entusiasmo não vem do nada. Ele representa a nova geração dos chamados análogos do hormônio GLP-1, classe de medicamentos originalmente criada para tratar a diabetes tipo 2 que vem revolucionando a forma como a medicina aborda a obesidade. Ao combinar a ação do GLP-1 com a do GIP — outro hormônio intestinal envolvido na regulação do apetite e da glicemia —, a tirzepatida atua em mais frentes do metabolismo e, segundo estudos, leva a perdas de peso superiores a 20% em adultos com obesidade.

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É mais do que o já expressivo resultado obtido com a semaglutida, princípio ativo do Ozempic e do Wegovy, cuja média fica entre 13% e 15%. “A gente acredita realmente que esses medicamentos vão ser o futuro do tratamento da obesidade, da diabetes e de várias outras doenças”, afirma o endocrinologista Paulo Rosenbaum, especialista em obesidade do Hospital Israelita Albert Einstein. “Há esperança de que isso possa mudar a vida de muita gente e que, com o tempo, eles possam ficar mais acessíveis e beneficiar uma população maior.”

Mas, se os efeitos impressionam, os custos — financeiros, sociais e biológicos — ainda estão em aberto. Enquanto isso, pacientes, médicos e autoridades tentam equilibrar o potencial terapêutico com os riscos conhecidos e os limites da prescrição responsável, numa corrida em que o peso perdido pode não ser o único impacto a ser medido.

Como funcionam os análogos de GLP-1

Os medicamentos que hoje lideram a revolução no tratamento da obesidade e da diabetes nasceram da descoberta do papel dos hormônios intestinais no controle do apetite e da glicemia. Um dos principais é o GLP-1 (glucagon-like peptide-1), produzido em resposta à ingestão de alimentos. Ele estimula a secreção de insulina, inibe o glucagon (hormônio produzido pelo pâncreas que tem a função de aumentar os níveis de glicose no sangue) e retarda o esvaziamento gástrico, prolongando a saciedade.

O primeiro análogo sintético do GLP-1, a exenatida, chegou ao mercado no início dos anos 2000. Desde então, as moléculas evoluíram em potência e praticidade. A liraglutida, de uso diário, oferecia resultados mais consistentes; depois vieram os compostos de aplicação semanal, como a dulaglutida e a semaglutida — essa última já indicada também para perda de peso.

“A gente viu uma evolução em termos de facilidade posológica e na perda de peso causada por medicações”, relata a endocrinologista Maria Edna de Melo, médica assistente do Grupo de Obesidade e Síndrome Metabólica do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).

A eficácia ganhou projeção mundial após a publicação do estudo STEP 1, no New England Journal of Medicine, em 2021. O ensaio mostrou que adultos com obesidade perderam, em média, 14,9% do peso corporal com semaglutida semanal — mais que o dobro dos resultados de intervenções anteriores.

Mas o impacto clínico vai além da balança. Segundo Melo, a perda de peso funciona como um ponto de inflexão, porque costuma desencadear o controle de outras condições. “Alguns estudos mostram que a semaglutida tem relação com a redução do risco cardiovascular”, afirma. A partir de março de 2024, essa indicação passou a constar na bula da semaglutida injetável de 2,4 mg (Wegovy), aprovada pela Food and Drug Administration (FDA), agência que regula e aprova medicamentos, vacinas e alimentos nos EUA, para reduzir eventos cardiovasculares em pessoas com obesidade e histórico de doença cardíaca — mesmo sem diagnóstico de diabetes.

Outros órgãos e sistemas também parecem se beneficiar do uso contínuo dessas medicações. Em estudos clínicos e observacionais, foram notadas melhorias em casos de apneia do sono, esteatose hepática (acúmulo de gordura no fígado) e até osteoartrite (doença crônica que causa o desgaste da cartilagem das articulações).

Há ainda pesquisas em andamento sobre os efeitos na saúde mental. Um estudo publicado em abril no JAMA Neurology associou o uso de agonistas do receptor de GLP-1 a uma redução significativa no risco de demência e comprometimento cognitivo, em comparação com outros tratamentos para diabetes tipo 2. Os efeitos neuroprotetores estão sendo testados também em quadros de Parkinson, dependência química e depressão resistente.

Mounjaro-injecoes-e1742412185426 Com chegada da tirzepatida, uso indiscriminado para emagrecer preocupaO Mounjaro, nome oficial do medicamento à base de tirzepatida, foi apelidado pelo Wall Street Journal de “king kong” dos remédios para emagrecimento

Prevenção oncológica

Um dos estudos mais recentes, apresentado no Encontro Anual de 2025 da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (Asco, na sigla em inglês), acompanhou mais de 170 mil adultos com obesidade e diabetes nos Estados Unidos. Os dados mostram que o uso dos análogos esteve associado a um risco 7% menor de desenvolver cânceres ligados à obesidade — entre eles, os de cólon, fígado, estômago, mama e endométrio — em comparação com pacientes tratados com inibidores de DPP-4, outra classe de antidiabéticos.

Embora sem comprovação de causalidade, os autores consideraram os achados “reconfortantes” e apontam que essas moléculas podem, no futuro, ter papel também na prevenção oncológica.

“A medicina tem recebido essas descobertas com entusiasmo, mas também com cautela”, pontua o endocrinologista Carlos André Minanni, do Einstein. “É importante lembrar que todo novo uso precisa ser bem estudado para garantir segurança e eficácia. O lado positivo é que estamos entrando em uma nova fase de tratamentos mais integrados, que cuidam do corpo como um todo — e esses medicamentos fazem parte dessa revolução.”

Efeitos colaterais

Apesar dos avanços com os medicamentos à base de GLP-1, ainda existem algumas lacunas importantes que a ciência está buscando esclarecer. A maior parte dos pacientes tolera bem os análogos de GLP-1, mas os medicamentos não estão isentos de riscos.

A bula aponta efeitos gastrointestinais como náusea, diarreia, vômito e constipação — relatados por até 18% dos usuários de tirzepatida e 24% dos que usam semaglutida. “Esses sintomas geralmente aparecem no início do tratamento e tendem a melhorar com o tempo, mas em algumas pessoas podem ser mais intensos. Por isso, o acompanhamento médico é fundamental para ajustar a dose e avaliar a tolerância”, explica Minanni.

Os efeitos no longo prazo também são desconhecidos. “Ainda não temos dados suficientes sobre o que acontece com o corpo após muitos anos de uso contínuo. Queremos entender melhor se os benefícios continuam se mantendo e se há riscos que só aparecem com o tempo”, diz. A segurança em populações específicas, como gestantes, crianças e idosos muito frágeis, é outra preocupação. “Isso limita nossa capacidade de recomendar o tratamento com segurança nesses casos”, completa Carlos Minanni.

Outro risco observado em estudos iniciais com semaglutida é a piora de casos já existentes de retinopatia diabética, especialmente em pacientes com diabetes. “O remédio melhora a glicemia muito rápido, e isso pode descompensar o quadro. Por isso é tão importante fazer o escalonamento da dose de forma gradual”, explica a endocrinologista do HC-USP.

Também preocupa a perda de massa muscular. Estudos indicam que entre 20% e 40% do peso perdido com GLP-1 pode vir de tecido magro, especialmente em indivíduos que não associam o tratamento à ingestão adequada de proteína e a exercícios de resistência.

“Pacientes que perdem muito peso podem perder massa magra e até desenvolver osteoporose. Em idosos e pessoas frágeis, é essencial combinar o uso com musculação”, orienta Rosenbaum. Em pacientes com obesidade e diabetes, esses medicamentos podem elevar o risco de pancreatite, inflamação do pâncreas que causa dor abdominal intensa e pode comprometer a digestão.

O maior alerta, no entanto, pode estar fora da bula: o uso sem indicação formal por pessoas que buscam emagrecer por estética, sem obesidade ou comorbidades. “As pessoas confundem o tratamento da obesidade com perder dois quilos. Isso estigmatiza o tratamento e atrapalha quem realmente precisa. Vira um problema mais social do que médico”, afirma Melo.

Em abril, a Anvisa anunciou que passaria a exigir retenção de receita para fármacos à base de semaglutida e tirzepatida, e estabeleceu um prazo de 90 dias para a validade da prescrição, numa tentativa de coibir a automedicação e o aumento indevido de dose — fator que eleva o risco de reações adversas. A medida deve entrar em vigor no dia 23 de junho. “Quando o paciente compra sozinho, às vezes já aplica uma dose que só deveria ser usada daqui a três meses. E isso aumenta o risco de efeitos colaterais mais fortes”, alerta a médica da USP.

Regulação, SUS e acesso à tirzepatida

Apesar das exigências da Anvisa para controlar o uso indevido dos medicamentos, o principal obstáculo continua sendo o preço. Dependendo da dosagem, uma caixa de Mounjaro pode custar até R$ 4.058,86, de acordo com a lista de preço máximo ao consumidor da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). Já Ozempic e Wegovy não saem por menos de R$ 1.065,75. Isso mantém o tratamento fora do alcance da maior parte dos brasileiros.

“Quando falamos desses medicamentos, falamos só de gente rica para gente rica. Ainda mais pensando no uso crônico, afinal, 70% da população vive com dois salários mínimos. Então é um assunto bem elitista”, opina Maria Edna de Melo. “Isso cria desigualdades no tratamento da obesidade e da diabetes, que são problemas de saúde pública”, concorda Minanni.

Enquanto o remédio chega ao varejo, o debate sobre sua inclusão no Sistema Único de Saúde (SUS) segue travado. Em maio de 2024, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) analisou dois pedidos: um da Novo Nordisk, fabricante do Ozempic, para incorporação da semaglutida a pacientes com obesidade e risco cardiovascular; e outro da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso), com apoio da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), pedindo a inclusão da liraglutida.

Ambos foram negados. Segundo a avaliação técnica, divulgada em consulta pública, o principal entrave foi o impacto orçamentário. Mesmo com propostas que limitavam o uso a casos graves, a estimativa de custo supera R$ 10 bilhões por ano.

Melo, que participou diretamente do processo relacionado à liraglutida, critica os critérios da análise. “A solicitação era para pacientes em situação extrema. Mas retiraram a doença cardiovascular do cálculo e fizeram a conta com base apenas em obesidade e diabetes, o que inflaciona o número de possíveis usuários”, aponta. Na prática, a decisão manteve o tratamento da obesidade fora do SUS, mesmo nos casos graves e com risco elevado de complicações.

Fonte: Agência Einstein

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